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'Crianças de Asperger'?

  • Foto do escritor: Melissa Martins
    Melissa Martins
  • 2 de jun. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 12 de jun. de 2020

Um livro, um artigo, a mesma história


O livro, Crianças de Asperger - As origens do autismo na Viena nazista, da Editora Record, 2019, mal chegou em minha casa e, na ânsia de esclarecer a história de Hans Asperger ligada a uma outra perspectiva do autismo, numa grave (e grande) mancha descoberta na história, devorei, e muitas vezes me engasguei, com a obra de 322 páginas.


Primeiro, fui entender quem era a autora. Descobri que Edith Sheffer é historiadora, especialista em História da Alemanha e da Europa Central, e senior fellow do Instituto de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia, Berkeley. Bem reconhecida e conceituada no meio em que atua. E ainda tem um detalhe, Sheffer, que tem um filho com TEA, há muito tempo estava curiosa a respeito de Asperger, que ela achava ter uma reputação ‘heroica’, até as primeiras pesquisas.


Nas literaturas educacional e psiquiátrica, Hans Asperger sempre foi descrito como um progressista que incentivava o cuidado individualizado em crianças com “sintomas de psicopatia de autismo”. Assim, Asperger entrou para a história da psiquiatria ao ampliar os critérios de definição desta condição de saúde e modificar a face do autismo, nos anos 90. Depois da guerra, ele se descreveu, em entrevistas, como um opositor da ideologia nazista e chamou o programa de eutanásia de ‘totalmente desumano’, mas pelos documentos investigados pelos especialistas citados ao longo deste post, esta não é uma verdade nada absoluta.

A síndrome de Asperger entrou oficialmente em uso no vocabulário clínico em 1981, quando a psiquiatra britânica Lorna Wing descobriu a tese de Asperger, de 1944, popularizando, assim, o trabalho dele. Mas foi em 1992, que a ‘Classificação Internacional de Doenças’ (CID) incluiu a síndrome e, dois anos depois, o ‘Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’, o então DSM-4, fez o mesmo.

Porém, a partir de novas análises de documentos, a autora, Edith Sheffer, revelou neste livro informações a respeito da atuação do médico, mostrando que o pesquisador, pioneiro no estudo da síndrome, esteve bem envolvido nas políticas de assassinato de crianças na era nazista. Agora, começo a entender por que diversos especialistas têm resistência em usar a palavra “Asperger” para se referir a pessoas com diagnóstico da síndrome, dentro do espectro do autismo. Tudo começa a fazer certo sentido!

A história engloba as ligações entre o autismo e o nazismo. Como os diagnósticos refletem os valores, as preocupações e as esperanças de uma sociedade. O regime nazista, como já se é sabido, massacrou milhões na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, classificando as pessoas de acordo com raça, religião, comportamento e condição física para tratamento ou extermínio. Os psiquiatras nazistas tinham como alvo crianças com diferentes tipos de deficiência, em especial aquelas que demonstravam déficit de habilidades sociais, alegando que o Reich não tinha lugar para elas.

Hans Asperger e seu colega austríaco Leo Kanner foram os primeiros médicos a introduzir o termo ‘autismo’ como diagnóstico independente para descrever certas características do distanciamento social, típico da síndrome. Asperger e seus colegas se esforçaram, de fato, em promover um cuidado individualizado para estimular o crescimento cognitivo e emocional de crianças que estariam na ponta ‘favorável’ do espectro autista; no entanto, transferiram outras que consideraram ‘intratáveis’ para o Am Spiegelgrund, um dos mais letais centros de extermínio de crianças do Reich.

Herwig Czech, em 2009, o historiador de Medicina na Universidade Médica de Viena e autor do artigo publicado na revista científica Molecular Autism, em 2018, foi convidado a falar em um simpósio comemorativo dos 30 anos de morte de Asperger, que aconteceria em 2010. Isso o inspirou a iniciar uma investigação nos arquivos do governo austríaco, em Viena, para obter mais informações a respeito de Hans Asperger, quando descobriu os registros clínicos bem preservados, inclusive encontrou um arquivo do Partido Nazista que garantiu a lealdade de Asperger ao regime nazista, embora ele não fosse um membro. Czech também encontrou escritos das palestras que Asperger havia ministrado, assim como seus registros de arquivos dos casos médicos e as anotações clínicas.

O médico austríaco Hans Asperger cooperou extensivamente com o regime nazista e pode ter enviado centenas de crianças para a morte (quase 800 crianças, muitas delas deficientes ou doentes, foram mortas lá, em Am Spiegelgrund). Detalhes horríveis de seu envolvimento foram revelados por Czech, na revista científica Molecular Autism, em 19 de abril de 2018, “Hans Asperger - National Socialism, and “race hygiene” in Nazi-era Vienna” (https://molecularautism.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13229-018-0208-6).

A narrativa de Asperger como um oponente de princípios do nacional-socialismo e um defensor corajoso de seus pacientes contra a "eutanásia" nazista e outras medidas de higiene racial não se sustentam diante das evidências históricas. O que surge é um papel muito mais problemático desempenhado por esse pioneiro na pesquisa a respeito do autismo, refletido o contexto perturbador de suas origens em Viena, no período nazista.

O livro Crianças de Asperger nos leva a refletir e a repensar como as sociedades avaliam, rotulam e tratam as pessoas diagnosticadas com algum tipo de deficiência. A trajetória destas pessoas nunca foi muito fácil e nada agradável, ainda atualmente, não são incluídas, apesar de muitos esforços de especialistas, educadores, familiares, ativistas e organizações.

O ‘Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’, o DSM-5, já dispensou a síndrome de Asperger por outros motivos, mas que colocam, com estas últimas informações, o termo num lugar bem distante do usual. Mas para alguns especialistas, mais cautelosos, afirmam que a mancha no nome de Hans Asperger não deve apagar as contribuições dele para o entendimento do autismo. Neste pensamento ambíguo, ao contrário de Czech, Sheffer diz que as pessoas deveriam parar de usar o termo Asperger. A informação por trás desta palavra, carregada de um significado, no mínimo, incômodo, foi o último prego em termos de evitar que a nomenclatura ‘Síndrome de Asperger’ volte, pelo menos para mim.


#PraCegoVer #PraTodosVerem Capa do livro com o título escrito Crianças de Asperger, as origens do autismo na Viena nazista, com uma foto, no centro da página, do Am Spiegelgrund Memorial, em Viena; no fim da capa está escrito o nome da autora, Edith Sheffer e no canto inferior direito está o logotipo da Editora Reccord. O prédio do Am Spiegelgrund Memorial, que está no centro da página, foi local das instalações psiquiátricas onde crianças e adolescentes foram sistematicamente mortos e seus cérebros removidos para pesquisa científica.

 
 
 

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